Por Jânsen Leiros Jr
Lucas 1:1-4 - KJA
Muitos
me perguntam por que resolvi iniciar os Exercícios Espirituais pelo Evangelho
de Lucas, e não pelo Evangelho de Mateus, que é o primeiro dos evangelhos
posicionados no Novo Testamento, ou mesmo por qualquer outro livro do compêndio
bíblico. E sempre levo um tempo em silêncio, buscando uma resposta que se
pretenda equilibrada entre as razões teológicas e as motivações meramente
pessoais. Talvez um instinto agudo de querer parecer intelectual. Nunca
consegui. Porque minha escolha deveu-se primordialmente a uma predileção
pessoal e prazerosa. E essa é a mais pura e simples verdade.
Sempre
achei a narrativa de Lucas mais interessante, mais humana e mais rica em
detalhes. E talvez por isso a tenha lido mais vezes que as demais. E
considerando que nada é tão improdutivo quanto realizar uma tarefa contínua,
que não nos traga um mínimo de prazer e alegria, optei por iniciarmos os
Exercícios exatamente em Lucas. Misto de interesse pessoal e prazer.
Sim.
Além das considerações teológicas e históricas que veremos adiante, é
importante destacar o prazer e a satisfação que podemos obter ao nos
envolvermos com a leitura do Evangelho de Lucas. Segundo Spinoza[1],
o prazer pode aumentar nossa capacidade de agir, o que se traduz em uma maior
dedicação e empenho nos estudos espirituais. Dessa forma, a escolha do
Evangelho de Lucas para nossos exercícios não se baseia apenas em critérios
teológicos, mas também na experiência prazerosa e enriquecedora que ele
proporciona.
Razões teológicas para iniciarmos por Lucas
É
claro que, por força de ofício, ainda que de ofício os Exercícios nada tenham,
há sim razões teológicas que nos orientam a iniciar nossas atividades por
Lucas. E tentarei organizá-las a seguir, de modo que nos deixe mais
confortáveis e interessados pela escolha.
Abordagem detalhada e rica em
narrativa
O
Evangelho de Lucas é conhecido por sua narrativa detalhada e rica em pormenores
sobre a vida, ministério, morte e ressurreição de Jesus. Isso proporciona uma
visão mais ampla e profunda dos ensinamentos e feitos do Senhor, permitindo uma
compreensão mais completa de sua mensagem e propósito.
Ênfase na compaixão e na inclusão
Lucas
retrata Jesus como alguém compassivo e preocupado com os marginalizados, os
pobres, os doentes e os pecadores. Ele destaca as parábolas de Jesus que
enfatizam a misericórdia, o perdão e a inclusão, o que é relevante para quem
busca compreender e praticar os ensinamentos de Cristo em sua vida cotidiana,
demonstrando amor e cuidado pelo próximo. Ao apresentar Jesus como revelador de
um Deus preocupado com os desfavorecidos das condições de uma vida digna, Lucas
ressalta que a indignidade humana não se restringe à condição financeira, mas
está principalmente relacionada ao afastamento de Deus.
Teologia da salvação universal
Lucas
também enfatiza a mensagem de que a salvação é para todos, independentemente de
sua origem étnica, social ou religiosa. Ele destaca o ministério de Jesus entre
os gentios e apresenta várias histórias de não-judeus que encontram graça e salvação
em Jesus. Isso é significativo quando exploramos a amplitude da graça e do amor
de Deus pela humanidade.
Ênfase na ação do Espírito Santo
Lucas
enfatiza a obra do Espírito Santo tanto no ministério de Jesus quanto na vida
da igreja primitiva. Ele registra o papel do Espírito Santo no nascimento de
Jesus, em seu ministério terreno e na capacitação dos discípulos para proclamar
o evangelho após a ascensão de Jesus. Isso é relevante para uma compreensão
mais profunda da atuação do Espírito Santo em nossas vidas e em nossos dias.
Lucas apresenta Jesus como o Homem Perfeito, interessado em salvar o que se
havia perdido. Todo o evangelho trata dessa humanidade plena e perfeita,
sustentada pelo Espírito de Deus, que capacitou Jesus a realizar milagres e
prodígios, e a confrontar os religiosos conformistas e aproveitadores de sua
época.
Conexão com o livro de Atos dos
Apóstolos
Lucas
é também o autor do livro de Atos dos Apóstolos, formando uma obra coesa que
narra a história da vida e do ministério de Jesus, seguida pela história da
igreja do primeiro século e da propagação do evangelho após a ascensão de
Jesus. Exercitar-se em Lucas pode preparar o caminho para uma compreensão mais
profunda do livro de Atos e vice-versa, fortalecendo o entendimento da ação
trina de Deus em Cristo, na Igreja e através dela. Essa característica é
particularmente interessante, pois o evangelho de Lucas parece ser o primeiro
volume de uma obra de dois volumes, sendo Atos dos Apóstolos o segundo livro de
um mesmo trabalho. Tanto que Atos inicia com uma espécie de resumo do final do
Evangelho de Lucas, como que introduzindo a história seguinte com as últimas
cenas da narrativa anterior, estabelecendo um conjunto coerente que aponta
ainda mais claramente as temáticas doutrinárias passadas por Lucas ao longo de
seu evangelho.
Além
das razões teológicas que justificam a escolha pelo Evangelho de Lucas como
texto inicial para nossos exercícios bíblicos, seu estilo literário também é um
fator importante a ser considerado. Lucas adota uma exposição temática dos
fatos e diálogos narrados, concentrando ideias e princípios doutrinários,
refletindo a teologia oral que já estava em construção à época em que escreveu
seu evangelho. Vale ressaltar que Lucas foi companheiro de Paulo em suas
viagens missionárias, o que possivelmente influenciou sua abordagem teológica.
Assim como Marcos, que foi influenciado por Pedro, Lucas parece ter sido
influenciado pela visão teológica de Paulo, tanto em seu evangelho quanto no
livro de Atos dos Apóstolos.
Quando o Evangelho de Lucas foi
escrito?
Embora
a data precisa da redação do Evangelho de Lucas não seja conhecida, estima-se
que tenha sido entre 60 e 63 d.C. Esta estimativa se baseia na ausência de
referências à destruição do templo ou à morte de Paulo no texto, eventos que
provavelmente teriam sido mencionados se já tivessem ocorrido. No entanto, mais
do que a data exata da escrita, o que realmente importa para o nosso estudo é a
riqueza teológica e narrativa presente no Evangelho de Lucas.
Que
os nossos Exercícios Espirituais, a partir de hoje, nos proporcionem
musculatura espiritual capaz de nos forjar maturidade na alma, para que
prossigamos em crescer na graça e no conhecimento de Deus.
[1]
Baruch Spinoza, filósofo holandês do século XVII, desenvolveu a ideia de que o
prazer pode aumentar nossa capacidade de agir, o que ele chamou de
"potência de agir" em sua obra "Ética". Segundo Spinoza,
quando experimentamos prazer em algo, isso nos leva a buscar mais dessa
experiência, aumentando assim nossa capacidade de agir sobre o mundo. Em outras
palavras, o prazer nos impulsiona a agir de maneira mais eficaz e determinada,
contribuindo para nossa realização e felicidade.